O céu sobre Kael-Vharn estava limpo, mas Rayn não se sentia em paz.
Ele e Liora seguiram pela trilha do norte, guiados por um novo nome revelado no livro antigo: Tahlia, uma antiga Guardiã ainda viva — ou pelo menos, era o que sugeria a última anotação. Seu lar: a Torre de Vidro, uma fortaleza esquecida no meio do nada, onde os ventos uivavam como ecos de fantasmas.
— E se ela estiver morta? — perguntou Rayn, andando ao lado de Liora.
— E se não estiver? — retrucou ela com um sorriso. — Às vezes, arriscar é o único caminho pra conseguir o que se precisa.
Ele sorriu de leve. Estava começando a gostar daquela resposta.
A Torre surgiu na manhã do terceiro dia. Não era feita literalmente de vidro — mas suas paredes brilhavam como cristal sob a luz, erguendo-se como um espelho torcido em meio às montanhas. Um campo mágico a cercava, quase invisível, como um véu tremulando no ar.
— Isso não é comum. — Liora parou, olhos semicerrados. — Estamos sendo observados.
Rayn já sentia o anel vibrando. Mas não era ameaça. Era... convocação.
Quando deram o primeiro passo rumo à torre, o véu se abriu. E uma figura surgiu entre eles e o portão.
Era uma mulher — talvez com pouco mais de quarenta anos, cabelos prateados presos num coque trançado, olhos violeta. Ela vestia um manto de tom azul escuro, costurado com símbolos que pulsavam sutilmente.
— Vocês carregam um fogo que não lhes pertence — disse ela, com a voz calma, mas carregada de poder. — Por que vieram?
Rayn hesitou, mas deu um passo à frente.
— Meu nome é Rayn Ardell. Este anel... me escolheu. E eu quero entender o que isso significa.
A mulher observou por um longo momento. Então assentiu.
— Então entre. A chama precisa de vento, ou se apaga.
O interior da Torre era ainda mais estranho. Salas suspensas por correntes, livros que flutuavam de uma estante à outra, cristais que armazenavam vozes e memórias. Rayn se sentia pequeno — mas também... certo de que estava no lugar correto.
Tahlia, a mulher da entrada, era mesmo uma Guardiã. A última da torre. Sobrevivente da queda. E, até aquele momento, isolada do mundo.
— Eu sabia que um novo portador surgiria — ela disse, horas depois, enquanto andavam por um salão forrado de janelas. — Mas esperava alguém mais… treinado.
Rayn riu sem humor.
— Eu fazia espadas. E nem era muito bom nisso.
— A Chama não escolhe por habilidade. Ela escolhe por vazio. — Tahlia o olhou nos olhos. — Por espaço dentro da alma.
Liora, encostada em uma coluna, arqueou uma sobrancelha.
— Isso parece poético demais pra uma guerra.
— E guerras são travadas com histórias, tanto quanto com lâminas.
Rayn segurava o livro de Aedryn Valis nas mãos. Ele o estendeu.
— O senhor da crônica... ele era um dos primeiros?
— O mais forte de nós. — Tahlia pegou o livro com reverência. — Ele caiu no fim da Primeira Brecha, tentando selar o Coração do Vazio. Aquilo que dorme além das fendas... ainda está lá. E agora, acordando.
Rayn sentiu a garganta secar.
— Eu vi ele. Em uma visão.
— Então o laço está crescendo.
Mais tarde, Tahlia levou-os à parte mais alta da torre. Lá, um círculo de runas brilhava sob o teto translúcido.
— Este é o Espelho de Horizontes. Ele mostra o que queima além da vista. — Ela ativou o círculo, e imagens começaram a surgir: cidades distantes, florestas ardendo, sombras se movendo sob a terra.
Mas o que fez Rayn gelar foi o que apareceu no final.
Um homem de manto escuro. Rosto coberto por uma máscara de metal. Um anel em seu dedo — idêntico ao de Rayn, mas negro como carvão.
— Quem é ele?
Tahlia não respondeu de imediato.
— O outro escolhido. Ou o que restou de um. Ele se chama Kael.
Liora sussurrou:
— Isso explica a sensação estranha que tivemos perto do vale. Alguém já estava procurando os Fragmentos antes de nós.
— E Kael não quer selá-los. — Tahlia se virou, séria. — Ele quer abri-los. Todos. Porque acredita que o Vazio é o próximo passo da criação.
Rayn sentiu o coração bater mais rápido.
— Então não sou só um Guardião. Sou um... oposto.
Tahlia assentiu.
— Luz e sombra. Fogo e cinza. Sempre vêm em pares.
Naquela noite, enquanto Liora dormia no salão inferior, Rayn subiu sozinho até o topo da torre.
A cidade distante dormia sob um céu salpicado de estrelas. Mas ele sabia que, em algum lugar além das montanhas, Kael também observava.
Não disse nada. Apenas fechou os olhos e deixou a brisa da torre soprar sobre o símbolo em sua mão.
E a chama, dentro dele, cresceu.