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Chapter 9 - Capítulo 9 – Cinzas que Sussurram

"Nem todo eco vem do passado. Alguns são avisos do que está por vir."— Inscrição nas muralhas de Dhal'Ren

O mundo parecia diferente desde que Rayn tocara o fragmento da máscara. O vento carregava um cheiro estranho — não de morte, mas de memória queimada. Árvores que antes se curvavam ao sol agora apontavam para o chão, como se envergonhadas de existir. Até a luz parecia hesitar.

Eles haviam deixado a câmara atrás da Porta, mas não retornaram ao mesmo lugar. Estavam em um campo que não conheciam, coberto por cinzas leves como neve. O céu tinha uma tonalidade ferrugem, e o som do mundo parecia abafado, como se escutassem tudo por trás de uma parede grossa de vidro.

Liora passou a mão no ombro de Rayn, que permanecia ajoelhado, olhos fixos no fragmento da máscara em sua mão.

— Você está bem?

Ele não respondeu de imediato. Quando o fez, a voz veio rouca.

— Ele me mostrou algo. Não sei se era uma visão, uma lembrança... ou um aviso.

Saen observava o horizonte com o cenho franzido. Seu grimório flutuava ao lado do ombro, as páginas girando sozinhas, inquietas.

— Isso não é mais o mesmo mundo — ela murmurou. — A Porta era um lacre. Agora, algo escapa. Talvez seja apenas tempo… ou talvez seja ele.

Liora cruzou os braços.

— Precisamos sair daqui. Descobrir se o mundo todo foi afetado ou só essa região.

Rayn guardou o fragmento da máscara em uma bolsa de couro presa ao cinto. Só de tocá-lo, sentia o calor da coisa viva dentro. Não pulsava como magia. Pulsava como um coração inquieto.

Eles seguiram em direção às montanhas, por uma trilha coberta de cinzas. O silêncio entre eles pesava mais que qualquer monstro.

Foi apenas ao entardecer que encontraram um vilarejo — ou melhor, o que sobrou de um.

As casas estavam inteiras, mas os moradores... ausentes. Não mortos. Desaparecidos. Como se o mundo tivesse engolido suas presenças.

Portas abertas. Comidas ainda quentes nas mesas. Pegadas que terminavam do nada.

— Isso aconteceu hoje — disse Liora, ao tocar a tigela sobre a mesa. — Ainda está morna.

Rayn não disse nada. Ele olhava para uma pintura na parede: uma família sorrindo. Cinco pessoas. Nenhuma delas presente.

— Eles não fugiram — disse Saen, examinando marcas no chão. — Foram levados. Ou desfeitos.

Liora se virou para Rayn, olhos estreitos.

— Isso tem a ver com o fragmento?

Ele hesitou.

— Eu não sei.

Mas a verdade era que ele sentia. O mundo o sentia. Como se ele estivesse carregando uma rachadura, e o universo inteiro estivesse tentando se moldar ao redor dela.

Eles passaram a noite ali, em silêncio. Dormiram em camas que não lhes pertenciam, sonhando com vozes que não conheciam.

Na manhã seguinte, a situação ficou pior.

O céu escureceu. Mas não por nuvens. Uma sombra pairava acima das montanhas — como um véu vivo, ondulando no céu. Não era tempestade. Era presença.

— Isso é um Breach. Uma fenda no tecido do mundo — disse Saen, franzindo a testa. — Nunca vi algo assim crescer tão rápido.

Liora sacou sua adaga.

— Isso não está crescendo. Está vindo até nós.

E estava.

A sombra avançava, lentamente, mas com propósito. E à medida que se aproximava, o som sumia. Pássaros silenciavam. Insetos paravam. Até os passos deles se tornavam inaudíveis.

Foi Rayn quem percebeu primeiro.

— Isso está me seguindo.

Ele parou.

E a sombra também.

Liora arregalou os olhos.

— Você está dizendo que... isso tudo começou quando você pegou o fragmento?

Saen suspirou, derrotada.

— É pior. Não começou. Despertou. Algo que estava adormecido em Rayn… ou que usou o fragmento como âncora.

— Então o que fazemos? — perguntou Liora. — Jogamos isso fora?

Rayn balançou a cabeça.

— Não adiantaria. Ele está dentro de mim agora.

Houve silêncio. Um silêncio terrível. Até Liora, com sua língua afiada, não soube o que dizer.

A noite caiu, e com ela, os sussurros.

Rayn não sabia se vinha da sombra, do fragmento, ou de dentro dele mesmo. Mas ouvia. Vozes de pessoas que nunca conheceu. Chamando-o por nomes que não eram seus.

"Aedryn…"

"Filho da ruína…"

"Guardião do fim…"

Ele tapou os ouvidos. Mas o som continuava, como se ecoasse dentro do osso.

Liora notou. Ajoelhou-se ao lado dele.

— Ei. Fica comigo. Me escuta.

— Elas estão falando. Elas sabem quem eu sou. Antes mesmo de mim.

— Elas mentem — disse ela. — O que quer que esteja aí dentro… quer te quebrar. Não vamos deixar.

Rayn a olhou, olhos vermelhos de esforço.

— E se... eu for mesmo o próximo Kael?

Ela suspirou. Tocou o ombro dele.

— Então me avisa antes. Pra eu poder te derrubar antes que fique insuportável.

Ele riu. Um riso fraco, mas verdadeiro.

Saen observava à distância. E pela primeira vez, Rayn percebeu que havia medo nos olhos dela.

Na manhã seguinte, decidiram procurar por alguém que ainda pudesse ajudá-los. Uma fonte de sabedoria fora da linha dos Guardiões.

— Há uma figura — disse Saen. — Vive isolada entre os precipícios de Relynth. Foi conselheiro da Primeira Ordem. Ninguém sabe o nome verdadeiro. Chamam de Velho do Oco.

— Ele é confiável? — perguntou Liora.

— Não. Mas ele sabe coisas. E neste ponto, saber é viver.

Partiram antes que o céu decidisse engoli-los.

Rayn caminhava em silêncio. Mas algo crescia dentro dele. Não poder. Não coragem. Era como um olhar interno. Uma consciência observando cada pensamento dele. Como se o fragmento tivesse aberto mais do que uma porta... tivesse aberto uma janela para dentro.

E do outro lado, algo olhava de volta.

A trilha até Relynth era estreita, cercada por penhascos e pedras suspensas por magia antiga. Ventos sopravam segredos pelas rachaduras da terra.

Foi ali que o mundo os encontrou novamente.

Ao dobrar uma curva, viram um homem em pé no centro da trilha. Usava uma armadura rachada, os olhos cobertos por uma faixa preta. Em sua mão, uma lança que parecia feita de sombra condensada.

Ele falou sem mover os lábios.

— Rayn. Filho do vazio. Aquele que não deveria ter voltado.

Rayn empunhou a espada.

— Quem é você?

— Um dos Sete Ecos. Últimos remanescentes do Primeiro Ciclo.

Saen empalideceu.

— Isso não é possível. Os Sete foram desfeitos há eras.

O homem sorriu. Ou pareceu sorrir.

— Tudo que é desfeito… retorna. Você sabe disso.

Rayn avançou, mas o Eco não atacou. Estendeu a mão, como se oferecesse algo.

— Entregue o fragmento. Volte para o esquecimento. E pouparei o que resta.

Rayn olhou para Liora. Depois para Saen. E balançou a cabeça.

— Já fiz parte do silêncio por tempo demais.

A espada brilhou.

O Eco atacou.

A luta foi brutal. Cada golpe do Eco fazia o mundo ao redor estremecer. Sua lança atravessava a matéria, abrindo cortes no próprio espaço. Mas Rayn... resistia.

Não por força.

Mas porque, pela primeira vez, aceitava quem era.

Golpe por golpe, sombra por luz, ele avançava.

Liora o protegia com agilidade, desviando e distraindo. Saen mantinha barreiras instáveis entre as rachaduras do mundo.

E então, Rayn cravou a espada no peito do Eco.

Mas em vez de sangue... memórias escorreram. Imagens. Pessoas. Mundos inteiros.

O Eco caiu de joelhos.

— Então é verdade… você carrega a cicatriz do Início.

— O que você quer dizer com isso?

O Eco olhou para ele, olhos vazios.

— O fragmento... é só o começo. A verdadeira chave... está dentro de você. Sempre esteve.

E desfez-se em poeira.

Rayn caiu de joelhos, exausto.

— Ele… me chamou de "filho do vazio". O que isso significa?

Saen respondeu com hesitação:

— Talvez você não seja apenas herdeiro do legado dos Guardiões… mas de algo mais antigo. Algo... anterior à luz.

Liora se ajoelhou ao lado dele.

— Isso muda o que você é?

Rayn olhou para o céu, agora ainda mais escuro.

— Não. Mas muda o que eu preciso fazer.

E então, o fragmento da máscara vibrou em sua bolsa.

Como se tivesse aprovado a resposta.

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