A trilha que levava à Fronteira Sombria parecia viva.
Neblina densa se arrastava pelo chão como serpentes de fumaça. Árvores secas sussurravam mesmo sem vento. E o ar... tinha gosto de ferro antigo.
Rayn, Liora e Saen avançavam em silêncio. O trio era uma mistura frágil de propósitos: lealdade, dúvida e algo não dito.
— Este lugar não devia existir — murmurou Liora, olhando para as marcas no chão.
— Não existe — respondeu Saen. — Está entre dois mundos. A fronteira onde os deuses hesitam pisar.
Rayn sentiu o anel formigar no dedo.
— Então é aqui que Kael pretende abrir a Brecha?
Saen assentiu.
— Ou reabrar o que nunca foi fechado por completo.
Eles pararam diante de um antigo portão de pedra coberto por runas partidas. Acima, esculpido na rocha: "Aqui jaz o Silêncio."
— O que isso quer dizer? — Rayn perguntou.
Saen fitou o símbolo por um longo momento.
— Que a dor daqui foi tanta... que nem os ecos ousam voltar.
Ao cruzarem o portão, o mundo mudou.
O tempo parecia lento. As cores, desbotadas. E no meio de tudo, uma criatura de três olhos e pele translúcida os esperava. Não era hostil. Nem viva, exatamente.
— Um Eco — sussurrou Saen. — Fragmento da memória de um lugar esquecido.
A criatura falou sem mover a boca.
— Guardião. Escolhido. Fogueira. Sangue.— Lembras-te do que nunca soubeste?
Rayn sentiu a mente vibrar. Imagens invadiram seus sentidos: um templo em chamas, uma criança sozinha, uma mão que se estendia e desaparecia.
— Que lugar é esse?
— A Segunda Memória. — respondeu o Eco. — Onde a verdade morre para que o mundo viva.
Liora se aproximou, séria.
— Isso é um enigma ou um aviso?
— Os dois. — respondeu o Eco, e então se desfez em cinzas.
Horas depois, acamparam perto de uma queda d'água escura como petróleo. Liora se afastou um pouco. Rayn se sentou, ainda atordoado. Saen ficou ao seu lado.
— Você viu algo naquele Eco, não foi?
Rayn hesitou.
— Vi... algo que parecia comigo. Um passado que não lembro de viver.
— Talvez não tenha vivido. Ainda.
Ele a encarou.
— Isso não faz sentido.
— A magia antiga raramente faz. Ela dobra o tempo, os laços, as escolhas. Às vezes... mostra futuros. Ou aquilo que você se recusou a lembrar.
Rayn desviou o olhar.
— Eu só quero fazer a coisa certa.
— Então precisa decidir o que é certo pra você. E aceitar que nem todos vão concordar.
Mais tarde, Liora voltou. Ela e Saen trocaram olhares breves, tensos.
— Precisamos descansar por turnos — disse. — Não sabemos o que mais pode estar aqui.
— Eu fico primeiro — disse Rayn.
Liora hesitou, mas concordou.
Enquanto a noite avançava, o garoto permaneceu acordado, olhos no fogo. E então, de repente… ele ouviu.
Um sussurro.
"Rayn... Rayn..."
Levantou-se devagar. O som vinha da floresta. Familiar. Quente.
Seguiu, hipnotizado. Até ver uma figura entre as árvores: Tahlia.
— Você... está morta — murmurou ele.
Ela sorriu.
— Memórias não morrem. Especialmente as que você carrega.
Ele deu um passo à frente. Mas a figura se dissolveu. No lugar dela, uma marca no chão: o mesmo símbolo da máscara de Kael.
E sob ele… um mapa.
De volta ao acampamento, Rayn mostrou aos outros.
— Isso estava lá. Deixado de propósito. Por Kael. Ou...
— Ou por alguém que quer que você o encontre — disse Liora, olhando de lado para Saen.
Saen se levantou.
— Esse mapa leva à última Porta. A que dá acesso ao coração do Selo.
— Então é lá que vamos — disse Rayn.
— Pode ser uma armadilha — alertou Liora.
— Pode. Mas é nossa chance de entender tudo. Ou de impedir o fim.
Eles se entreolharam.
A decisão estava tomada.
Enquanto dormiam, Rayn sonhou com fogo. Mas não um que destrói. Era quente, protetor. Como se o mundo dissesse:"Você não está sozinho."
E quando acordou, viu Liora de guarda. Ela o olhava com olhos suaves — coisa rara nela.
— Vai dar tudo certo — disse ela.
Rayn sorriu, pela primeira vez em dias.
— Se não der... a gente queima junto?
— Juntos — respondeu ela, com um leve sorriso.
O sol ainda não havia nascido. Mas a jornada… já estava iluminada.