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Chapter 8 - Capítulo 8 – A Porta Que Chora

"Algumas portas se abrem com chaves. Outras com sacrifícios."— Fragmento das Crônicas de Aedryn

O caminho até a Porta Final começava no vale onde o próprio tempo parecia hesitar. Um lugar que até os mapas de Saen marcavam apenas com silêncio. Ali, árvores tinham galhos voltados para o chão, e o vento sussurrava nomes esquecidos.

Rayn sentia o anel vibrar a cada passo. Como se soubesse que se aproximava de algo antigo, imenso… e errado.

— Isso aqui era um santuário — disse Saen, examinando as runas que cobriam o chão de pedra. — Antes da queda da Primeira Ordem. Aqui, eles guardavam os últimos fragmentos do mundo anterior.

— Que mundo era esse? — perguntou Liora.

— Um onde os Guardiões eram muitos. E erraram em uníssono.

Eles seguiram até uma grande muralha natural. E ali, cravada entre raízes negras e pedra úmida, estava a Porta.

Não era feita de metal. Era de osso esculpido, pulsando como se respirasse. Ranhuras corriam em padrões que lembravam costelas humanas. No centro, uma fenda estreita, como um olho fechado.

— Isso não é magia normal — murmurou Rayn.

— Porque não foi feita com magia — respondeu Saen. — Foi feita com lembrança. Cada fragmento dessa porta... é uma memória de dor.

Liora se aproximou, tocando a superfície com a ponta dos dedos. Retrucou com sarcasmo, mas sua voz soou vacilante:

— E como se abre uma porta feita de sofrimento?

Saen respondeu sem hesitar:

— Com mais sofrimento.

Enquanto Saen preparava um ritual para tentar ativar o selo, Rayn e Liora se afastaram por alguns minutos. O silêncio entre eles não era incômodo, mas carregado.

— Você confia nela? — Rayn perguntou, encarando o céu sem estrelas.

Liora suspirou.

— Confio que ela quer evitar o fim do mundo. Só não confio nos meios.

— Parece que ela já esteve aqui antes.

— Parece que ela guarda mais segredos do que você pode carregar.

Rayn a observou em silêncio. Viu o jeito como seus olhos vagavam, inquietos. Ela parecia mais tensa do que o normal.

— E você? — ele perguntou. — Por que ainda está aqui?

Liora arqueou uma sobrancelha.

— Você quer que eu vá?

— Não. Só quero entender.

Ela hesitou, como se segurasse algo que não queria admitir.

— Porque... alguém precisa estar aqui se você cair. E, sinceramente? Acho que você ainda vai cair.

Rayn não respondeu. Mas quando ela se afastou, ele percebeu que aquelas palavras — duras, frias — haviam sido, na verdade, as mais cuidadosas que já recebera.

O ritual começou com um círculo de cinzas e fragmentos de pedra das ruínas ao redor. Saen murmurava em uma língua que não era mais falada, com as mãos estendidas para a fenda da porta.

Então, de repente... um grito.

A porta chorou.

Não um som metálico. Não o ranger de engrenagens. Foi um grito humano. Mil vozes, como se as memórias presas ali estivessem sendo forçadas a acordar.

— Ela está abrindo — disse Saen, suando. — Mas exige um preço.

A fenda começou a se alargar.

Rayn caiu de joelhos. O anel em seu dedo queimava. E, diante de seus olhos, imagens começaram a surgir: Kael, diante da mesma porta. Tahlia, ferida ao lado dele. E algo mais... uma sombra com olhos como buracos no tecido da realidade.

E então, uma última visão.

Ele mesmo. Mas não como era agora. Mais velho. Olhos cheios de dor. E... a máscara de Kael em sua mão.

Rayn acordou com um solavanco. O chão tremia. A porta estava entreaberta. Uma brisa fria soprava lá de dentro, carregando um odor de folhas mortas e ferro enferrujado.

— O que você viu? — perguntou Saen, ajudando-o a se levantar.

Rayn não respondeu.

— Rayn?

— Eu vi... a mim mesmo. No lugar de Kael.

Saen o encarou por um segundo. Depois, murmurou:

— Então é verdade. A linha está se repetindo.

— Que linha?

— A de todos os Guardiões. O ciclo que sempre retorna: esperança, poder, queda.

Liora empunhou a adaga.

— E vamos quebrar esse ciclo agora, ou vamos assistir ele acontecer de novo?

Rayn respirou fundo. E passou pela porta.

Dentro, o mundo era diferente. Como se estivessem caminhando por dentro de um sonho.

Colunas de luz suspensas no vazio. Estruturas quebradas flutuando como pedaços de um castelo despedaçado. E no centro, sobre um altar... um fragmento de máscara.

Era metade do rosto de Kael. E pulsava com o mesmo brilho vermelho do anel de Rayn.

— Isso é um foco — disse Saen. — A essência do que ele foi. Ou do que ele se tornou.

Rayn estendeu a mão. Mas antes que tocasse, algo surgiu do escuro.

Uma criatura de corpo translúcido, olhos brancos, e dentes que não pareciam ter fim.

— Um Guardião perdido — murmurou Saen. — Aquele que falhou em fechar a Primeira Brecha.

A criatura rugiu.

Rayn puxou sua espada.

Liora correu ao lado dele.

Saen levantou as mãos para preparar um escudo de luz.

O combate começou.

A criatura era rápida. Se movia como uma lembrança ruim: impossível de agarrar, mas impossível de ignorar.

Rayn rolou para o lado, desviando de garras feitas de névoa sólida. Liora cravou sua adaga no flanco da criatura, mas ela se desfez e se reformou atrás dela.

— Nada está funcionando! — gritou ela.

— Não é uma fera comum! — respondeu Saen. — É feita de arrependimento!

Rayn parou.

Ele se lembrou das palavras do Eco.

"Lembras-te do que nunca soubeste?"

Então fez algo inesperado.

Abaixou a espada.

A criatura parou. Seus olhos vazios fixos nele.

— Você... era como eu — disse Rayn, sem saber se a criatura o entendia. — Falhou. Temeu. Tentou consertar e afundou mais ainda.

A criatura avançou.

Mas Rayn não se moveu.

— Eu não vou mais lutar contra o que sou. Nem contra o que temo.

A criatura parou a centímetros dele.

E... desapareceu.

Restou apenas uma pena negra no ar.

Saen e Liora correram até Rayn. Mas ele só se virou para o altar.

— Agora, eu entendo. A porta não se abre com força. Ela se abre com verdade.

Ele tocou o fragmento da máscara.

E então, tudo se apagou.

Rayn acordou em um campo escuro, rodeado por estrelas mortas. E diante dele... Kael.

Sem máscara. Sem armadura. Apenas um homem. Exausto.

— Então chegou até aqui.

Rayn apertou os punhos.

— O que você quer?

Kael o olhou, cansado.

— Que você não cometa os mesmos erros que eu. Mas temo que seja tarde.

— Por quê?

Kael sorriu. Mas não foi um sorriso de vilão. Foi um de pena.

— Porque às vezes... salvar o mundo exige perdê-lo primeiro.

E desapareceu.

Rayn abriu os olhos. Estava de volta. Com Liora e Saen ao seu lado.

Mas algo havia mudado.

Em sua mão, agora havia não apenas o anel... mas também o fragmento da máscara.

E ele sabia: aquilo era o começo. Ou o fim.

Dependia apenas dele.

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