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Chapter 3 - Capítulo 3 – Vozes nas Pedras Antigas

As colinas de Kael-Vharn surgiram ao horizonte como ossos velhos de uma criatura esquecida. As ruínas se espalhavam ao longe, fragmentadas pelo tempo, cobertas por raízes, musgo e uma névoa persistente que pairava como se recusasse a partir. Diziam que ali moravam os ecos do mundo antigo — e agora, Rayn e Liora estavam a poucos passos de descobrir se os ecos também sabiam gritar.

— Eu não gosto desse silêncio — murmurou Liora, apertando a adaga ao lado do quadril.

Rayn apenas assentiu. Sentia o mesmo. Desde que puseram os pés na trilha de pedra gasta, o ar mudara. Era mais denso, mais pesado, como se a própria terra estivesse sussurrando advertências.

O anel em seu dedo vibrava levemente. Não com calor, como antes, mas com algo mais sutil — uma espécie de alerta, como se dissesse "fique atento" sem palavras.

— Você sente isso também? — perguntou ele.

— Como se o chão estivesse observando a gente? Sim. — Ela forçou um meio sorriso. — Melhor do que nada. Em pântano sem bicho, a cobra é a rainha.

As ruínas centrais de Kael-Vharn lembravam um templo despedaçado. Pilares quebrados se erguiam como dedos implorando para o céu. No centro, havia uma escadaria em espiral que descia até o subsolo. Rachada, coberta de limo, mas ainda de pé.

Rayn hesitou no topo dos degraus. O vento que soprava lá de baixo não era comum — era frio, sim, mas não só isso. Era como se tivesse atravessado algo... morto.

— Se quiser esperar aqui fora, eu entendo — disse, virando-se para Liora.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— Você tem jeito de protagonista, Rayn, mas eu não sou figurante. Vamos logo.

Ele sorriu de canto e começou a descer.

Lá embaixo, o tempo parecia paralisado. O salão principal era vasto, circular, com colunas esculpidas com runas que brilhavam fracamente sob a luz da tocha. O centro do chão tinha um grande mosaico: uma chama dourada cercada por sombras negras, estilizadas como serpentes e garras. Rayn sentiu o símbolo de sua mão reagir, aquecendo, respondendo à energia do lugar.

— Isso é… antigo. — Liora se ajoelhou, tocando uma das runas com cuidado. — Essas marcas contam histórias. Lendas, talvez. Ou alertas.

Rayn se aproximou, os olhos fixos na chama dourada. E então, a voz retornou.

"Este é o berço. Onde a primeira chama foi acesa. Onde a queda começou."

Ele caiu de joelhos. A visão o atingiu como uma tempestade.

Ele via... outro tempo. Um mundo diferente. Chamas correndo por espadas douradas, Guardiões de mantos reluzentes lutando contra criaturas de ébano. Via o céu rasgado por fendas negras, cidades inteiras sendo tragadas pelo Vazio. E via um homem — um Guardião — com o mesmo anel que Rayn carregava, selando um portal com o próprio sangue.

E, no fim… o silêncio. O esquecimento.

— Rayn! — A voz de Liora o puxou de volta. Ele arfava, suando, as mãos cravadas no chão de pedra.

— Eu vi... tudo. Ou... parte. Os Guardiões. A guerra. O selo…

— Você tocou em algo profundo demais — murmurou ela, puxando-o com cuidado. — A memória do mundo é como uma fogueira velha: se cutucar muito, acende outra vez.

Rayn se sentou, respirando fundo.

— Eles morreram pra impedir o Vazio. E falharam. Só conseguiram selá-lo… por um tempo.

— E agora você carrega a chave. — Ela olhou para o anel. — Ou o fósforo.

Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, o chão tremeu.

E então, o som. Um rosnado baixo, gutural, que reverberou pelas paredes como se fosse parte da pedra. Do teto, algo caiu: uma criatura quadrúpede feita de sombras, com olhos como carvões fumegantes e presas longas como adagas.

— Isso é um Fragmento? — sussurrou Liora, recuando.

— Eu acho que é um maior.

O monstro avançou com um rugido. Rayn ergueu a mão instintivamente, e uma barreira de luz azul se formou entre eles, repelindo o ataque. Mas o impacto o jogou contra uma coluna, fazendo o peito arder.

Liora aproveitou para atacar, rápida como uma flecha. Cravou a adaga na sombra, mas o corpo da criatura parecia... escorregadio, quase etéreo. Mesmo assim, ela recuou com um sorriso.

— Tá mais vivo do que parece!

Rayn se levantou com esforço. O símbolo em sua mão ardia. O anel brilhava como nunca.

— Eu... acho que posso usar isso.

Fechou os olhos. Respirou fundo. E deixou a chama dentro dele crescer.

Quando abriu os olhos, estavam iluminados por um brilho dourado. Sua mão se ergueu, e da palma surgiu uma lança de luz — não feita de metal, mas de energia pura, vibrante, moldada por vontade.

Com um grito, lançou a arma.

A lança atravessou o peito da criatura, que explodiu em fragmentos de escuridão e poeira mágica, desaparecendo sem deixar rastro. A sala voltou ao silêncio.

Rayn caiu de joelhos outra vez, exausto.

Liora se aproximou, assoviando.

— Isso foi... espetacular. Estava guardando isso esse tempo todo?

— Foi a primeira vez.

— Então vou ficar por perto pras próximas.

Mais tarde, antes de saírem das ruínas, encontraram uma cripta escondida sob o mosaico. Lá, descansava o corpo embalsamado de um antigo Guardião, envolto em mantos agora desbotados. Em suas mãos, havia um livro — uma crônica escrita em uma língua antiga, mas parcialmente legível graças às runas ainda ativas.

Rayn pegou o tomo. Sentiu que seria importante. Dentro dele, havia o nome do Guardião que selou o portal na visão: Aedryn Valis. E uma profecia fragmentada.

"Quando a chama for acesa por mãos que não empunham coroa, os Fragmentos despertarão, e o Coração do Vazio se abrirá novamente."

Rayn fechou o livro.

— Isso não é só sobre mim. É sobre o que está voltando.

Liora assentiu, séria.

— E a gente vai precisar de aliados. E respostas. E talvez… sorte.

Rayn olhou para as ruínas uma última vez antes de saírem.

— E tempo. Porque algo me diz que ele está acabando.

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