Cherreads

Chapter 2 - Acordes da perdição

A chuva fina caía sobre a terra molhada, transformando o chão da floresta em lama. O dia estava prestes a morrer, tingido por um pôr do sol cinzento, que se escondia atrás de nuvens pesadas como luto.

Jin caminhava sem rumo, os pés afundando na terra, o corpo curvado como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros. A adaga quebrada da mãe pendia frouxa em sua mão, arrastando na lama, como um eco de tudo que perdeu.

Então, vozes surgiram entre as árvores.

Risos.

— Ei, ei... olha só o que temos aqui.

Cinco homens de armaduras gastas e olhares duros cercaram Jin. Aparentavam ter enfrentado batalhas, mas suas expressões não carregavam honra — só desprezo. Um deles, com uma cicatriz no rosto e uma maça presa nas costas, apontou para o garoto.

— Esse é o demônio? — cuspiu ao chão. — Dizem que o vilarejo de Eres foi engolido por um monstro… e só restou isso?

Jin não respondeu. Apenas ergueu os olhos vazios. Sem medo. Sem raiva. Sem alma.

— Olha os olhos dele… é como encarar um poço sem fundo. Eu tô dizendo, isso aí não é humano.

— Aposto que tem o diabo no corpo — outro murmurou. — Vamos acabar com ele antes que traga desgraça pra cá também.

E então vieram os golpes.

Primeiro um chute no estômago. Jin caiu, a lama respingando em seu rosto inexpressivo. Depois, vieram os socos, os chutes, as risadas. A adaga da mãe caiu ao chão com um som surdo.

Mas ele não gritou.

Não se protegeu.

Apenas sentiu o peso. O peso que merecia.

> “Se eu tivesse sido mais forte…”

“Se eu tivesse corrido… lutado…”

“Eles ainda estariam vivos…”

— Não sente nada? — disse um dos homens, socando seu rosto. — Nem dor, nem medo? Que tipo de monstro é você?

O sangue misturava-se à lama. Jin cuspia vermelho, mas não emitia um som.

E então, uma voz ecoou entre as árvores:

— Isso é o que vocês chamam de coragem? Espancar uma criança? — disse uma voz feminina, calma, mas carregada de força silenciosa.

Os homens se viraram.

Entre as sombras da floresta, surgiu um grupo de quatro pessoas, em silêncio, como o vento antes da tempestade.

A que havia falado era alta e magra, com cabelos prateados presos atrás da cabeça. Seus olhos dourados — calmos, profundos — fitaram os homens como quem vê algo abaixo da dignidade.

Kaellia, meio humana, meio fada. Líder do grupo. Sua presença era como névoa sobre o campo: sutil, mas impossível de ignorar.

— Ele é um monstro, senhora… — disse um dos agressores. — Só estamos fazendo o que é certo.

— E qual é o seu crime, então? — perguntou Allan, surgindo à direita. Seus músculos pareciam moldados em pedra, a espada gigante apoiada no ombro. Os olhos vermelhos flamejavam. — Covardia?

Ao lado dele, uma menina de cabelos azuis brilhantes e olhos de esmeralda correu até Jin, ajoelhando-se com lágrimas surgindo.

Lyn, a curandeira. Jovem demais para aquele mundo, mas de coração mais maduro que qualquer homem ali.

— Meu Deus… — sussurrou ela, passando os dedos sobre o rosto machucado do garoto. — Uma criança dessa idade devia estar correndo e brincando… e não coberta de cicatrizes…

Por fim, uma figura ficou em silêncio, à sombra de uma árvore.

Saphira.

Tinha cabelos azul-escuros, quase negros, iguais aos de Jin. Os olhos azuis brilharam com uma dor que ela mesma não compreendia. Parecia ser da mesma idade que ele. E mesmo sem conhecê-lo, já sentia como se algo dentro dela estivesse conectado àquele garoto caído.

— Já vi o suficiente. — disse Kaellia. — Vão embora. Agora. Ou se ajoelhem pela última vez.

Os homens não ousaram questionar. Recuaram como ratos diante da presença de lobos. E desapareceram.

Kaellia se ajoelhou ao lado de Lyn e tocou o rosto de Jin, que agora respirava de forma irregular. O selo em seu peito pulsava como uma ferida viva.

— Ele... ele não está nem tentando viver... — disse Lyn, chorando. — É como se tivesse desistido.

Jin ergueu os olhos por um momento, apenas um.

Fixou os de Saphira.

Um segundo.

Dois.

E desmaiou.

Allan o pegou nos braços como quem carrega uma relíquia frágil.

— Vamos levá-lo pro acampamento.

Kaellia assentiu.

— Talvez ainda exista algo dentro dele que possa ser salvo.

Enquanto se afastavam da clareira, a chuva aumentou.

As gotas lavaram o sangue da terra.

Mas não a dor.

E atrás deles, sobre a lama, a adaga quebrada da mãe ficou caída por um instante — até que Saphira a pegou, com cuidado, apertando-a contra o peito como quem segura uma promessa.

O garoto sem emoções havia sido encontrado.

Mas ainda não estava salvo.

Durante dias, o grupo viajou pela floresta densa rumo à capital. Jin era transportado cuidadosamente, ora nos braços de Allan, ora em um pequeno carro improvisado por Lyn e Saphira. O silêncio em torno dele era quase religioso. Cada parada para acampamento era marcada por olhares inquietos.

— Ele não fala... não se move... nem mesmo parece respirar direito — comentou Lyn certa noite, enquanto verificava seus curativos. — É como cuidar de uma boneca de porcelana rachada por dentro.

Saphira ficava ao lado de Jin sempre que podia, observando-o como quem tenta decifrar uma língua morta.

Kaellia mantinha o grupo em movimento, mas às vezes, ao olhar para o garoto, seus olhos dourados perdiam a tranquilidade usual.

— Há uma guerra dentro dele — disse certa vez, enquanto Allan afiava a espada ao lado da fogueira. — E nós só podemos esperar pra ver quem vai vencer.

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Em algum lugar entre a vida e a morte...

Jin se via em pé. Num campo negro, sem chão, sem céu. Apenas o vazio.

— Finalmente acordou, pequeno recipiente.

A voz veio como um trovão, mas também como um sussurro dentro do crânio. À sua frente, ergueu-se uma forma gigantesca, envolta em sombras que se contorciam como serpentes.

Bouros.

Seus olhos vermelhos brilhavam, seu corpo parecia feito de fragmentos de ossos e carne viva, moldado por ódio.

— Esperava mais do menino que ousou me selar. — disse, dando um passo à frente. — Mas ao invés disso, ganhei um morto-vivo de olhos vazios. Uma piada maravilhosa!

Jin não respondeu. Não podia. Seu corpo ali não reagia, mas sua consciência queimava com a presença do demônio.

— Não se preocupe. Eu sou um bom hóspede. — Bouros inclinou a cabeça, sarcástico. — Por isso… como forma de agradecimento, vou te devolver algo.

Jin sentiu um calor repentino no peito. Como agulhas perfurando de dentro pra fora.

— Ressentimento. Culpa. Angústia. — Bouros lambeu os dentes como se provasse cada palavra. — Vai sentir isso até o último suspiro. Porque um monstro como você merece lembrar. Merece sofrer.

A voz se tornou mais baixa. Mais cruel.

— Você selou um demônio… mas também selou o que havia de humano em você. Agora me carrega como uma cicatriz viva. E acredite… — ele se inclinou, perto demais — eu ainda estou aqui.

A escuridão começou a ruir ao redor de Jin. E então, uma nova luz surgiu. Suave. Quente.

Bouros recuou como se algo o repelisse.

— Ela vem aí... tsc. Que farsa melodramática.

A luz cresceu e envolveu Jin, afastando as sombras. E então, do centro dessa luz, sua mãe apareceu.

Vestia roupas simples. Os mesmos cabelos presos em trança, os olhos doces como ele sempre lembrava. Ela sorriu.

— Oi, meu amor.

Jin caiu de joelhos. As lágrimas corriam por seu rosto, mas ele não as sentia. Só via.

— Mãe…

Ela o abraçou, e pela primeira vez em muito tempo, Jin sentiu calor. Algo além do frio do selo.

— Eu senti tanto sua falta…

— Eu sei. Eu sempre estive aqui — ela respondeu, acariciando seu cabelo. — Mesmo quando você não podia me sentir.

Jin ergueu os olhos para ela, confuso.

— Por que eu… por que isso aconteceu comigo?

Ela hesitou. E então falou, com ternura, mas firmeza.

— Porque você carrega dentro de si um poder que muitos desejariam destruir. O poder de comandar os mortos. Aqueles que já foram... você pode chamá-los de volta, guiá-los como um maestro diante de uma orquestra. Esse é o seu dom.

— Maestro… dos Mortos…?

— É um fardo, Jin. Mas também é uma bênção. Você não está condenado a ser uma arma… a menos que acredite que é.

Ele abaixou a cabeça.

— Eu matei… todos morreram… por minha culpa. Eu não consegui salvá-los. Eu não mereço isso.

Ela o segurou pelo rosto. Seus olhos estavam marejados.

— Você fez o que pôde. E ainda está aqui. E um dia... vai entender por quê.

A luz em volta dela começou a enfraquecer. Ela apertou a mão dele.

— Quando tudo parecer perdido… eu estarei com você. Sempre.

Mesmo que não me veja. Mesmo que não me escute.

Eu vou te proteger, quando você mais precisar.

— Eu prometo.

Jin tentou segurar a luz, mas ela se desfez em faíscas douradas ao seu redor.

De volta ao mundo real...

O sol filtrava-se por entre as árvores altas, salpicando o chão do acampamento com feixes dourados. O ar estava úmido, carregando o cheiro de terra e folhas recém-molhadas pela chuva da noite anterior.

O garoto de cabelos escuros abriu lentamente os olhos.

Seu olhar ainda era o mesmo: vazio, fundo, como um abismo que engolia qualquer tentativa de luz.

O som dos pássaros ao longe, o murmúrio de vozes baixas, o crepitar da fogueira. Tudo parecia distante. Irreal. Como se ainda estivesse naquele lugar entre a vida e a morte.

Mas não estava.

Estava ali.

Vivo.

Sentado num leito improvisado de cobertores e panos secos, ergueu lentamente o corpo. E então sentiu.

Algo escorria em seu rosto.

Molhado.

Levou a mão devagar até a bochecha e, ao tocá-la, se assustou.

Lágrimas.

Escorriam em silêncio. Mas seu peito estava oco. Não havia dor. Nem tristeza.

Não sentia nada.

E ainda assim… chorava.

— A-alguém! Ele acordou! — gritou Lyn, correndo até onde ele estava. Seu rosto mostrava alívio, mas também medo.

Ela parou a centímetros dele, observando em silêncio por um instante.

— Você… está bem?

Ele não respondeu.

Seus olhos estavam abertos, mas não pareciam ver nada.

Kaellia e Allan se aproximaram rapidamente. Saphira chegou por último, quase sem respirar. Seu olhar se fixou nas lágrimas dele.

— Ele está chorando… — murmurou.

— Mas ele não parece triste… seu rosto permanece inexpressivo— Kaellia sussurrou, inclinando-se com cuidado.

O garoto apenas olhou em direção a ela, sem dizer uma palavra.

Lyn se ajoelhou ao lado dele.

— Ei… como se chama? Você consegue me dizer seu nome?

Silêncio.

Nenhum som saiu da boca dele. Nem mesmo um gesto. Só aquele olhar profundo… quebrado.

— Ele… ele nem sabe quem é? — Allan perguntou, perplexo.

— Ou talvez só tenha esquecido como se fala com pessoas — respondeu Kaellia, triste.

Saphira se agachou à frente dele, tentando encontrar algo em seu olhar. Algo que talvez estivesse enterrado no fundo.

— Você está seguro agora… tá bem? — disse com um sorriso leve. — A gente não vai te machucar.

Nada.

Mas uma única lágrima escorreu de novo.

Lyn olhou para os ombros e braços dele — marcas, hematomas, cicatrizes ainda frescas.

Ela apertou os punhos, tremendo.

— Desse tamanho, e carrega cicatrizes que nem os guerreiros mais experientes tem... cicatrizes como se tivesse voltado do inferno…

Kaellia pousou a mão no ombro dela.

— Talvez… ele tenha voltado.

Todos ficaram em silêncio por alguns segundos.

O garoto abaixou os olhos. Algo dentro dele ardia. Uma lembrança? Uma sensação?

Mas passou.

Seu rosto permaneceu inexpressivo.

Sem nome. Sem palavra. Sem passado.

E ainda assim, ele estava ali.

Sobrevivente.

Carregando o assasino de seus próprios pais... em seu coração... e a orquestra da morte em sua alma.

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