Os dias seguintes foram silenciosos.
Não por falta de palavras. Mas porque nenhuma era suficiente.
Desde que aquele poder explodiu de mim, algo mudou. Meus sentidos estavam mais aguçados. Meu corpo se movia com mais precisão. Mas também... havia uma escuridão à espreita, sussurrando nas bordas da consciência.
Velka percebeu.
— Está lutando contra ele, não é?
— Contra o quê?
— Contra você mesmo.
Estávamos à beira de um lago congelado, o céu cinzento refletindo nossas sombras tortas sobre o gelo.
— Você já sentiu isso? Como se algo te chamasse de dentro... algo que não é você, mas também é?
Velka ficou em silêncio. Então, respirou fundo e tirou a blusa.
Fiquei paralisado. Não pelo corpo — que era forte, lindo e marcado — mas pelas cicatrizes. Havia dezenas delas. Antigas, profundas. Algumas pareciam queimaduras, outras, símbolos feitos com lâminas.
Ela me olhou.
— A Seita do Fim Branco me criou. Eu era uma oferenda.
Engoli seco.
— Oferenda?
— Eles me criaram para ser um receptáculo. Para receber a essência de Caos em um ritual que falhou... por minha causa. — Ela olhou para o próprio reflexo no gelo. — Fugi. Matei meu mestre. Desde então, eles me caçam. E eu caço eles.
A dor na voz dela me atingiu mais forte que qualquer golpe de espada.
— Você... é como eu.
Ela assentiu.
— Somos rachaduras do mesmo espelho.
Aproximei-me devagar, tocando as cicatrizes em seu ombro.
— Você é forte. Não por ter sobrevivido... mas por ainda sentir.
Ela tremeu.
— Eu tenho medo de me apegar. Medo de perder tudo de novo.
— E eu tenho medo de me tornar o que odeio. Mas mesmo assim... estou aqui. Com você.
Ela me puxou. O beijo dessa vez foi mais longo, mais calmo. Não havia raiva. Só necessidade. Um desejo bruto de se sentir vivo.
Dormimos juntos naquela noite. Não por prazer, mas por alívio. Por segurança. Por amor, mesmo que nenhum de nós ousasse chamar assim.
Mas antes que o sono me levasse, ouvi novamente a voz dele:
> "Ela será sua salvação... ou sua ruína. Como toda chama, ela ilumina — mas também queima."
Acordei suando frio.
O mundo estava prestes a desabar. E nossos corações estavam presos no meio.