A luz negra engoliu o mundo.
O tempo, por um instante, se curvou diante do toque de Ryouma na pele fria e etérea de Daelus. Não era calor, tampouco ausência dele — era algo além da matéria, além da lógica. O toque ativou ecos. Vozes. Memórias de mundos enterrados sob camadas de eras.
Tang San recuou instintivamente, cobrindo os olhos enquanto a pressão espiritual aumentava em torno deles. Xiao Wu caiu de joelhos, segurando a cabeça, como se mil agulhas invisíveis perfurassem sua mente.
Ryouma, no entanto, estava imóvel.
O contato não doía. Não feria. Mas estilhaçava tudo o que ele pensava ser. Como se cada lembrança, cada convicção, estivesse sendo desconstruída e reconstruída à imagem de algo muito mais antigo.
Dentro do Sistema, alertas surgiam sem cessar.
[Sincronia Iniciada – Entidade: Daelus, O Juiz Perdido][Corpo físico incompatível: 83% de rejeição espiritual][Risco de morte: 67%][Adaptando núcleo espiritual…]
O mundo ao redor parecia girar. O chão se deformava como líquido espesso. As árvores da floresta gritavam sem som, sombras se estendiam em direções impossíveis, e uma sensação de que o céu estava invertido tomou o ambiente.
No centro disso tudo, Ryouma estava de olhos fechados.
"Eu vejo…"
"O Julgamento…"
"O Início…"
A consciência de Daelus se infiltrava em sua mente não como palavras, mas como lembranças vivas.
Imagens desconexas: uma torre invertida flutuando num mar de estrelas; um exército de criaturas feitas de cristal e fogo, ajoelhadas diante de uma figura encapuzada; um trono vazio; e finalmente, o Julgamento — a execução de um ser com olhos como os de Tang San, mas com asas negras e marcas douradas queimando no corpo.
— Você é feito de decisão — murmurou Daelus, com voz mais fraca agora. — Você existe para quebrar ciclos. Mas será forte o bastante? Ou será quebrado junto com eles?
O poder do ser ancestral começou a se transferir. Não todo. Apenas um fragmento. Uma centelha.
Tang San percebeu isso.
— Ele está... recebendo algo que não deveria! — gritou. — Ryouma! Pare! Você não sabe de onde isso veio!
Mas era tarde demais.
O corpo de Ryouma foi envolto em símbolos giratórios, marcas que pareciam tatuagens divinas se formando em sua pele, brilhando em tons prateados e negros. Uma delas, em especial, tomou forma no centro de seu peito — a runa do Julgamento.
A explosão de energia final foi contida, mas potente. Tudo ao redor foi arremessado para longe — folhas, pedras, e até Tang San e Xiao Wu foram empurrados alguns metros. Os outros alunos, ainda inconscientes, foram poupados da cena completa.
Ryouma caiu de joelhos.
A fumaça negra que envolvia Daelus dissipou-se. As asas sumiram. O corpo daquele que fora o Juiz começou a virar poeira prateada.
— Eu fui... um fragmento. Nada mais. — disse Daelus. — Mas agora... você carrega o Eco. O Julgamento não terminará aqui…
Seus últimos traços desapareceram como areia levada pelo vento.
O silêncio caiu.
Ryouma respirava com dificuldade, mas estava consciente. Seus olhos estavam diferentes. Ainda negros, mas com pequenas faíscas prateadas nas bordas da íris. A energia ao seu redor parecia... diferente. Menos como a de um humano, mais como a de algo híbrido. Um receptáculo de eras.
Tang San se aproximou lentamente.
— O que você fez?
Ryouma o encarou.
— Escolhi. Você teria hesitado. O mundo não pode mais esperar por hesitação.
Tang San franziu o cenho. Ele não estava zangado — não ainda. Mas havia uma tensão crescente. Uma ruptura silenciosa.
— Você acha que entende este mundo porque já o viu de outro. Mas está mudando coisas que não compreende totalmente.
— E você acha que manter o equilíbrio é sempre o melhor caminho?
— Eu acredito que cada decisão deve ter peso. Você absorveu algo que ninguém — nem mesmo os mestres — entenderiam. E se você perder o controle?
Ryouma sorriu. Um sorriso frio. Maduro.
— Então será você quem me enfrentará. Como sempre foi o destino.
Essa frase causou um estalo no ar entre eles.
Como se o futuro estivesse selado naquele momento.
Tang San deu um passo para trás. Seus olhos estavam calmos, mas cheios de significados ocultos.
— A partir de agora, não confio mais em você, Ryouma.
— Ótimo — respondeu o protagonista. — Eu também não confio em mim.
Naquela mesma noite, longe dali, nas Montanhas do Norte, um velho homem acordou de um sonho com suor escorrendo pela testa.
Era o Ancião de um dos clãs secretos do mundo dos mestres espirituais. E seu sonho fora um presságio.
— O Julgamento... voltou — murmurou.
Ele olhou para o céu. Uma estrela havia piscado vermelho por um breve instante.
E isso significava apenas uma coisa.
Alguém havia tocado o Eco da Divindade.
Enquanto isso, no Salão dos Espíritos, a Pontífice Suprema meditou em silêncio.
Em sua visão espiritual, uma energia nunca antes vista no continente acabara de surgir. Uma mistura de sagrado e profano, de julgamento e caos.
— Que tipo de aberração está nascendo sob nossas narinas...? — ela murmurou.
Na manhã seguinte, os professores da Academia Shrek estavam em choque.
O local onde Ryouma e os outros haviam treinado estava completamente destruído. Marcas de uma energia ancestral marcavam o solo. E o cristal que antes era apenas um elemento curioso da floresta agora não existia mais.
Flender olhava para as marcas no chão e depois para Ryouma, que estava em silêncio.
— Isso foi você?
Ryouma olhou para ele. Seu olhar era mais profundo agora. Não arrogante. Apenas... distanciado.
— Foi o que precisava ser feito.
Flender engoliu em seco.
— Não importa o quanto você esteja crescendo, garoto. Se se tornar uma ameaça à Academia, nós...
— Eu sei — interrompeu Ryouma. — E espero que estejam prontos para me parar, quando chegar a hora.
Flender ficou mudo.
O silêncio se prolongou até o Mestre chegar. Tang San estava logo atrás dele.
O Mestre não disse nada imediatamente. Apenas observou.
— Houve uma alteração no seu espírito — afirmou. — Sua essência espiritual se expandiu.
Ryouma assentiu.
— Um fragmento antigo se conectou a mim. É tudo o que posso dizer... por enquanto.
O Mestre se aproximou mais, analisando. Finalmente, falou:
— Algo em você... está em conflito. Você não absorveu essa herança de forma pacífica. Está dividindo o corpo com algo maior.
Ryouma olhou para o céu.
— Que bom que alguém percebeu.
O Mestre manteve o olhar fixo nele.
— Isso não terminará bem.
— Talvez não — respondeu Ryouma. — Mas pelo menos... não vai terminar como antes.
Tang San se virou e começou a andar.
— A partir de agora — disse ele, sem olhar para trás — você está por sua conta, Shin Ryouma. Espero que saiba o que está fazendo.
Ryouma olhou para as próprias mãos.
Chamas negras dançavam entre seus dedos, silenciosas, obedientes. Mas, em seus olhos, o reflexo era de algo muito maior.
O Julgamento havia começado.
E o mundo... começava a se curvar.