A névoa se fechou como cortinas de seda rasgada, ocultando o céu e apagando qualquer sinal de tempo ou espaço. Ethan respirava com dificuldade — não por falta de ar, mas pelo peso invisível que o pressionava. Cada passo no solo brumoso soava como um mergulho em um passado que ele nunca teve. Ou teve, mas esqueceu.
À sua frente, o Guardião do Caminho da Escolha permanecia imóvel, o cajado dourado fincado no chão, como se sustentasse o próprio mundo.
— Primeiro julgamento: O que teria sido, se não tivesse partido — disse o Guardião, a voz ecoando em múltiplas direções.
A névoa girou em espirais, moldando-se em paisagens familiares. Ethan reconheceu o lugar no mesmo instante — era sua casa no mundo anterior. O mundo moderno que deixara para trás.
Tudo estava igual. O cheiro do café recém-passado. O tique-taque do relógio de parede. A pilha de livros técnicos na mesa. E no centro de tudo... estava ela.
Sua irmã.
— Emma...?
Ela virou-se com um sorriso. Tinha o mesmo olhar carinhoso de sempre. Mas havia algo diferente. Um cansaço profundo nos olhos. Uma ausência difícil de descrever.
— Você está atrasado, Ethan. De novo.
— Isso é... real?
— O suficiente para doer — murmurou uma voz atrás dele. O Guardião havia se fundido à paisagem, agora observando da varanda, como um vizinho curioso.
Ethan deu um passo à frente, mas parou. Emma se aproximou.
— Você me deixou, Ethan. E quando você foi... ninguém me ouviu mais.
Imagens começaram a dançar ao redor — Emma chorando no hospital, sozinha. Emma gritando com médicos. Emma caminhando pela casa vazia, falando com as paredes. Emma parada diante de uma lápide sem nome.
— Eu tentei continuar. Mas você era a ponte entre mim e o mundo. E quando a ponte caiu... eu caí também.
Ethan sentiu as pernas falharem. Queria gritar que não era verdade, que ele não escolhera isso. Mas sabia que, em algum nível, era verdade.
— Isso é uma ilusão.
— Talvez. Mas e se não fosse?
O Guardião surgiu ao lado da imagem de Emma.
— Este é o eco do que você abandonou. O que teria acontecido se tivesse ficado. Você ainda acha que está salvando o mundo... ou está apenas fugindo de si?
Ethan fechou os olhos. Respirou fundo.
— Eu não sou um herói. Não sou um salvador. Mas também não sou uma fuga. O que deixei para trás me molda, sim... mas não define o que eu sou agora.
As imagens congelaram. A névoa explodiu em partículas de luz.
— Primeiro julgamento superado.
O chão tremeu. Ethan caiu de joelhos, a cabeça latejando como se algo tentasse sair de dentro. Elyss, que estava ao seu lado, tocou seu ombro.
— Você está sangrando.
— Estou me fragmentando — ele murmurou. — Cada vez que supero um deles... uma parte de mim é refeita.
— Ou quebrada — respondeu ela, em tom sombrio.
Mas não havia tempo para dúvidas. O Guardião ergueu o cajado novamente.
— Segundo julgamento: o que você se tornou ao aceitar o poder.
A névoa se reorganizou com violência, formando agora uma cidade destruída. Prédios desmoronados, pessoas carbonizadas, o céu em chamas. E no centro da destruição... Ethan.
Mas não ele. Uma versão dele com olhos vazios e sorriso torcido. Flutuava acima da cidade como um deus vingativo. Nos ombros, dezenas de Fragmentos fundidos, pulsando como tumores vivos.
— Esse sou eu...?
— Isso é você... caso continue absorvendo sem equilíbrio — respondeu o Guardião. — Um devorador de possibilidades. Um buraco negro de identidades.
A versão alternativa o encarou.
— Você ainda não entendeu, não é? Cada Fragmento que consome te aproxima de mim. De nós. E quando finalmente aceitar tudo, o mundo inteiro será sua consciência... ou sua prisão.
A visão o atingiu como um soco no estômago. Crianças correndo em chamas. Rios de almas gritando. O nome dele sendo sussurrado como maldição.
— Pare! — gritou Ethan. — Eu não quero isso!
— Mas quer o poder — zombou sua versão sombria. — Quer vencer Tang San. Quer reescrever os céus. Não minta para si mesmo.
Ethan se lançou contra a projeção. Lutaram entre escombros, o poder dos Fragmentos colidindo em ondas que distorciam a realidade. A versão sombria era mais forte, mais experiente, mais... fria.
Mas Ethan tinha algo diferente. A lembrança da dor. Do caminho percorrido.
— Eu não sou você. Porque ainda duvido. Ainda temo. E enquanto tiver medo de me tornar um monstro... não serei um.
Com um grito, Ethan canalizou os Fragmentos. Ao invés de usá-los como armas, usou como escudos. Cada golpe absorvia energia, não a devolvia. E, aos poucos, a cópia começou a se desfazer.
— Segundo julgamento superado.
Ethan caiu de joelhos novamente, ofegante. Sua pele estava marcada por veios negros que brilhavam e pulsavam. Elyss o segurou.
— Você está à beira da ruína.
— Ainda falta um julgamento.
— O último sempre é o mais cruel.
O Guardião não disse nada. Apenas apontou o cajado.
— Terceiro julgamento: O que você nunca teve coragem de desejar.
Ethan apareceu num campo verdejante. Uma vida simples. Uma cabana. Crianças correndo. Uma mulher sorridente — a mesma de um dos espelhos no Véu Interno. Ele mesmo, sentado com um livro, rindo.
— Isso... nunca aconteceu.
— Mas você desejou. No fundo, desejou que tudo fosse diferente. Que o poder, a vingança, a dor... nunca tivessem feito parte da sua jornada.
O outro Ethan se virou. Não disse nada. Apenas sorriu, genuinamente. E aquele sorriso foi o golpe mais brutal de todos.
— Você pode desistir agora — disse o Guardião. — Abandonar os Fragmentos. Esquecer os horrores. Recomeçar aqui. É só... desejar.
O campo se tornou tentador. A paz, quase insuportável. Ethan deu um passo. Outro. Mas parou.
— Isso seria traição.
— A quem? Ao mundo? Ao Tang San? A Elyss?
— A mim mesmo. A todas as versões de mim que sofreram para chegar aqui.
Ele se virou para o Guardião, os olhos ardendo.
— Não. Eu não aceito a paz comprada com o esquecimento.
A visão desfez-se em cinzas.
— Terceiro julgamento superado.
O Guardião ajoelhou-se.
— Você é digno de continuar.
Três Fragmentos se desprenderam dele e entraram em Ethan, que gritou. O poder era demais. O céu rasgou. Uma luz negra caiu como um trovão silencioso.
Quando tudo terminou, Ethan estava de pé. Sangrando. Exausto. Mas inteiro.
— E agora? — perguntou.
— Agora — respondeu Elyss — vamos atrás do último Fragmento. O primeiro. O original. O que deu origem a todos os outros.
Ethan assentiu. E pela primeira vez... sentiu que estava pronto.