Dizem que o silêncio após uma grande guerra é o som mais perigoso do mundo.
Durante semanas, o continente cantou o nome de Ethan. Histórias correram como fogo nas planícies: o herói que derrotou Kael, o libertador da Torre Negra, o primeiro homem a fundir os Elos da luz e das trevas sem ser consumido.
Mas agora… ninguém mais fala dele.
Ninguém lembra que ele existiu.
A primeira cidade a desaparecer foi Varduun, uma fortaleza anã construída nas montanhas geladas do norte. Ela simplesmente… deixou de estar. Exploradores que foram até seu antigo território encontraram apenas uma cratera coberta por um véu de névoa branca, onde o som morria e as memórias se desfaziam. Nenhum rastro. Nenhum sobrevivente.
A segunda foi Myrell, uma vila de elfos artesãos. E então Kehrin, Toval, Duréa... nomes que desapareceram também das canções, dos mapas… e das mentes.
Apenas um grupo percebeu o padrão: os Vigilantes da Aurora, uma ordem secreta fundada por Ireth após a queda de Kael. Eles rastreavam distúrbios mágicos, anomalias no fluxo dos Elos e fragmentos da realidade alterada. E o que viram os deixou em pânico.
— Estamos lidando com um colapso metafísico. — disse Ireth diante do conselho dos Vigilantes. — Essas cidades não foram destruídas… foram apagadas. Removidas da linha do tempo. Alguém — ou algo — está reescrevendo o mundo.
Silêncio.
Até que alguém murmurou:
— Ethan.
Todos a olharam. A maga que dissera isso tremia. Era jovem, uma das últimas discípulas de Roran. Em sua mão, um antigo diário pulsava fracamente com uma energia familiar.
— Esse diário… ele fala de Ethan. Conta tudo. Mas… ninguém lembra quem ele é. Eu mostrei isso pra minha mãe, e ela jurou que Ethan nunca existiu.
Ireth pegou o diário com mãos trêmulas. Ao tocá-lo, sentiu algo como uma agulha entrando em sua mente.
E então, uma memória: a espada rasgando Kael ao meio… e a fissura se abrindo atrás do trono.
— Oh, deuses... — sussurrou ela. — Ele não selou Kael. Ele selou algo pior. E essa coisa está se alimentando... dele.
Ethan despertou sozinho no vazio.
Ou melhor… no que restava dele.
A realidade à sua volta era fragmentada, como vidro quebrado. Pedaços de lugares flutuavam ao redor: a escadaria da Torre Negra, uma árvore flutuante de Myrell, uma estátua derretida de Varduun. Ele estava no Vazio Entre Mundos — o que existia antes do mundo existir.
Mas o mais assustador… era o que não existia ali.
Ethan não sentia nada. Nenhuma dor. Nenhuma fome. Nenhum tempo.
Ele não envelhecia.
Ele não lembrava quem era, a não ser por flashes. A lâmina. O Elo Duplo. Um trono despedaçado.
E vozes.
— Você fez bem, Ethan. Mas agora… chegou sua hora.
Ele olhava ao redor, tentando encontrar a origem, mas não havia ninguém. Apenas o eco, que vibrava por dentro de sua mente, como se não fosse falado… mas pensado.
— Você foi a chave. E agora será o portal.
E então, o mundo estalou.
Uma rachadura surgiu no vazio, como um espelho trincando. Dela, uma fumaça negra começou a escapar… mas essa fumaça não era matéria. Era ideia. Era esquecimento.
E onde ela tocava, a existência desfazia.
Ethan tentou se mover. Mas cada passo que dava, apagava parte de si.
— Não… — murmurou. — Eu lutei pra proteger o mundo…
— E por isso mesmo será consumido por ele.
A voz vinha agora de uma figura encapuzada. Não tinha rosto. Não tinha forma. Era uma ausência absoluta, moldada apenas para ser compreendida por Ethan.
— Você acha que salvou o mundo, mas apenas rasgou o véu. Eu sou o que existia antes dos Elos. Antes do Primórdio. Antes da ideia de tempo. Kael era só um guardião do limiar. Você o destruiu. Agora… estou livre.
Ethan caiu de joelhos. O Elo Duplo queimava em seu peito, mas como uma chama fraca, quase extinta.
— Se for pra acabar… que acabe comigo. Não com eles.
A figura apenas se curvou.
— É tarde demais. Eles já esqueceram você. Em breve, esquecerão a si mesmos.
Na sede dos Vigilantes, Ireth lutava contra o esquecimento.
A cada dia, nomes sumiam. Desenhos desapareciam dos mapas. Até memórias pessoais eram corrompidas. Ela tentava escrever sobre Ethan em pergaminhos, mas as palavras sumiam. As imagens queimavam. O diário que continha os relatos havia se fechado — e a runa de Roran que o protegia estava se desfazendo.
— Ele ainda está lá… — disse ela, olhando para o céu. — Preso em algum lugar onde a memória não alcança.
Elira apareceu à sua porta naquela noite. Pálida. Cansada. Mas determinada.
— Eu também sonhei com ele. A torre. A lua. A espada. Lembro de tudo. Mas é como segurar água com as mãos. Vai embora rápido.
— Precisamos trazê-lo de volta. — sussurrou Ireth.
— Mas como se nem os deuses lembram dele?
Ireth respirou fundo.
— Não precisamos que os deuses lembrem. Precisamos de alguém que nunca o esqueceu. Alguém que ainda carrega um fragmento dele.
— Quem?
Ela encarou o sul. Onde, há anos, Ethan salvara um pequeno garoto durante a queda da fortaleza de Khalen.
— O filho da tempestade. Aquele que ele tocou antes de partir. Se há um eco dele em algum lugar... está naquela criança.
Enquanto isso, no Vazio, Ethan fechava os olhos.
Não como quem desiste. Mas como quem foca.
Dentro de si, ainda havia uma centelha. Uma lembrança que nem o esquecimento podia apagar.
O nome de alguém.
— Ireth.
E então, uma lágrima escorreu — primeira emoção em muito tempo.
O Elo Duplo brilhou. Fraco. Mas firme.
E pela primeira vez… o vazio recuou.
A entidade tremeu. O espaço distorceu.
E, em algum ponto distante da realidade… alguém se lembrou de Ethan.
Foi o suficiente.
Uma fissura apareceu no véu. Pequena. Mas viva.
E do outro lado, um sussurro atravessou o nada.
— Estamos vindo te buscar. Aguenta só mais um pouco.