O mundo não era mais o mesmo.
Após o despertar de Ethan no campo de batalha, algo invisível se espalhou por toda a extensão do continente. Uma onda silenciosa, como um sussurro do universo, que alcançou desde as torres mais altas das cidades imperiais até os ermos esquecidos das Terras Partidas. Era como se a própria realidade tivesse estremecido, alterando as leis fundamentais que a sustentavam.
E os mais sensíveis perceberam.
No Templo dos Oráculos, as sacerdotisas entraram em transe profundo, os olhos esbranquiçados, murmurando em línguas extintas há milênios. Nas fortalezas dos Lordes Élficos, os anciões se reuniram pela primeira vez em gerações, convocando um Conclave de Emergência. Até mesmo os Dragões Primordiais, que dormiam sob o Gelo Eterno do Norte, despertaram.
Todos sabiam: o Elo Primordial havia respondido a um humano.
E isso mudava tudo.
Ethan permanecia de pé no campo devastado, o corpo ainda envolto em fragmentos de luz e sombra. Não havia dor, nem cansaço. Apenas silêncio. Um silêncio pesado, denso, como se a realidade ainda estivesse tentando compreender o que ele havia se tornado.
Ao seu lado, Ireth o observava em reverência e temor. Mesmo com toda a sabedoria acumulada por séculos, ela não podia deixar de sentir um leve arrepio percorrer sua espinha.
— Você... mudou. — sussurrou ela. — Mas não apenas por dentro. O mundo está te ouvindo agora. O tempo está hesitando. Ethan, você se tornou uma interseção entre o que foi e o que ainda não é.
Ele desviou o olhar, fitando as ruínas à sua frente. Onde antes havia um campo de batalha, agora havia apenas cinzas e crateras. O confronto com Kael não havia terminado — apenas recuado. Ambos sabiam que o próximo encontro seria o último.
— Não posso mais voltar. — disse Ethan, a voz estranhamente calma. — Nem a quem eu era, nem ao caminho que todos esperavam que eu seguisse.
— Então você vai enfrentar Kael... mesmo sabendo o que isso pode custar? — perguntou Ireth.
Ethan olhou para o horizonte.
— Não há mais volta.
Nas profundezas da Torre Negra, Kael caminhava pelos salões inundados de sombras. Os ecos do último confronto ainda pulsavam em sua mente, mas havia algo diferente agora. Pela primeira vez, ele sentia dúvida.
Dúvida... e entusiasmo.
— Então você finalmente entendeu. — disse uma voz atrás dele.
Kael não se virou. Ele reconheceria aquela presença em qualquer lugar.
— Se veio zombar, escolha outro momento, Lys.
Das sombras surgiu uma figura feminina de beleza cruel e olhos que ardiam como carvões vivos. Lys, a Guardiã do Véu. Uma das poucas aliadas de Kael — ou pelo menos, alguém que fingia ser.
— Não vim zombar. Apenas observar. — disse ela, com um sorriso nos lábios. — Esse garoto, Ethan... ele está forjando algo novo. Algo que até os deuses temeriam.
Kael cerrou os punhos.
— Eu vi. Ele tocou o Primórdio... e sobreviveu. Está fundindo os Elos. Quebrando os limites.
— E você teme isso?
Kael se virou, os olhos queimando com uma raiva silenciosa.
— Não. Eu ansio por isso. Finalmente, alguém digno. Finalmente, um oponente à altura.
Lys riu suavemente.
— Cuidado com o que deseja, velho rei. Às vezes, o oponente à altura é aquele que cava sua sepultura com um sorriso no rosto.
Em um vale oculto pela névoa eterna, Ethan se sentava ao lado de Ireth e dos últimos aliados leais. Roran, o mago renegado, ajustava um artefato arcano em seu braço mecânico. Elira, a guerreira nômade, afiava sua lâmina encantada. Todos estavam ali por vontade própria — não por destino.
— Kael vai reunir tudo o que resta. — disse Roran, sem tirar os olhos do artefato. — Não podemos subestimá-lo. Ele pode ter perdido o equilíbrio momentaneamente, mas ainda carrega a centelha do Primórdio.
Ethan assentiu.
— E agora eu também. Mas não como arma. Como escolha.
— O que vamos fazer? — perguntou Elira. — Marchar para a Torre Negra como suicidas?
Ethan ergueu-se lentamente.
— Não. Vamos convocar o Conselho dos Destituídos. Unir os que Kael destruiu. As cidades esquecidas, os povos escondidos, os que perderam tudo e ainda assim resistem. Vamos mostrar ao mundo que o destino não está escrito. Vamos forjar um novo.
Todos se entreolharam. O que ele dizia era loucura... mas era uma loucura com propósito. E, naquele momento, ninguém duvidava de Ethan.
Ele era mais que um líder agora. Era um símbolo.
Nas semanas seguintes, a mobilização começou. Pelas florestas encantadas e desertos esquecidos, mensageiros foram enviados. Bandeiras foram hasteadas novamente, não com brasões de reinos, mas com o símbolo do Elo Duplo — dois círculos entrelaçados, um negro e um dourado.
A resistência tomava forma.
Ethan passou dias entre líderes antigos, feridos de guerras passadas, heróis que haviam sido silenciados por Kael. Cada um deles via algo diferente nele — esperança, loucura, revolução — mas todos respondiam ao chamado.
Enquanto isso, a Torre Negra se armava. Kael reunia seus generais restantes. Criaturas forjadas da fusão entre magia e carne, seres corrompidos pelos fragmentos do Vazio. Um exército não de soldados, mas de horrores.
E em um último gesto de desafio, Kael ergueu uma segunda lua no céu — feita de pura energia do Elo da Ruína. Um lembrete visível para todos: ele ainda era um deus entre homens.
Na véspera do confronto, Ethan se recolheu em um antigo santuário, longe dos olhares de seus companheiros. Sentou-se no centro de um círculo de runas esquecidas, e pela primeira vez desde o despertar... teve medo.
Não medo de morrer.
Mas medo de ser esquecido. Medo de que, mesmo vencendo, nada mudasse.
— Será que vai valer a pena...? — sussurrou.
— Apenas se você continuar escolhendo. — respondeu uma voz.
Era Ireth. Ela se aproximou, sentando-se ao seu lado.
— A diferença entre heróis e monstros não está no poder... mas nas escolhas. E até agora, você tem escolhido bem. Mesmo quando ninguém mais teria coragem.
Ethan fechou os olhos.
E pela primeira vez, permitiu-se acreditar.
A aurora estava prestes a nascer.
E com ela, viria o fim — ou o recomeço.