Cherreads

Chapter 68 - Dia da Rainha e da Serva.

---

Capítulo – Dia da Rainha e da Serva.

O céu do Norte amanheceu limpo, como se o vento tivesse varrido os gritos da guerra. No alto do Palácio dos Ursos, o som distante de festejos misturava-se ao bater de espadas em treino – os sobreviventes celebravam, e os mais velhos cuidavam de contar os nomes dos que não voltaram.

Cora já estava de pé. A luz matinal atravessava as janelas altas de seu quarto, e o cheiro da terra molhada se misturava ao das essências que a serva colocava nos cabelos dela.

Mas algo a incomodava.

Um perfume doce, exótico e inconfundivelmente caro.

Não era dela. E aquela não era uma serva de alto posto. Cora não disse uma palavra. Apenas olhou o reflexo da jovem pelo espelho, observando o leve rubor em suas bochechas e o brilho nos olhos que tentavam desviar os dela.

Anoto. Não falo. Ainda.

Vestida em tons claros, ela caminhou pelos corredores do palácio, os passos leves, mas carregados de intenção. Todos que a viam abaixavam a cabeça — menos ele.

Ao entrar nos aposentos reais, Dimitry sequer se virou. Estava diante da lareira acesa, mesmo com o dia já claro. O cheiro de incenso preenchia o ambiente.

— Preciso falar contigo sobre nossa filha — disse Cora, num tom que misturava urgência e elegância.

— Não hoje. — A resposta veio rápida, afiada. — Tive sonhos agitados. E pretendo descansar... o dia inteiro. Quero silêncio.

Ela franziu o cenho.

— Nem um instante para Kátyra?

Ele virou-se lentamente. Seus olhos estavam sombrios, carregando algo que ela não reconhecia.

— Kátyra escolheu andar nas sombras. Agora ela que aprenda a carregar o frio.

Frio. Era isso que ele deixava em cada palavra. Um frio que não vinha da montanha, mas do coração.

Cora apertou os lábios e curvou a cabeça com rigidez. Saiu sem dizer mais nada — mas as mãos dela tremiam levemente.

---

– Biblioteca das Terras Baixas

A poeira bailava entre os feixes de luz da biblioteca improvisada no antigo templo de pedra. Aelys soprava as páginas de um livro antigo, já meio roído por traças, intitulado Genealogia Celeste: Linhagens Guardiãs.

— Encontrei algo. — Aelys sussurrou para Kátyra, estendendo o livro. — Aqui... veja essa inscrição. "Tharion de Harel, o Filho da Sombra e do Vento." Está nos registros antigos.

Kátyra pegou o livro, inclinou-se. Folheou. Leu. Procurou o nome com os olhos... mas não viu nada.

— Aqui não tem nada, Aelys.

— Como não? Está... está bem aqui. — Aelys apontava com o dedo, confusa. — Eu juro que vi!

Kátyra olhou de novo. Só via páginas manchadas e nomes que não significavam nada para ela.

— Talvez você esteja vendo o que quer ver.

— Ou talvez você esteja deixando de ver o que precisa... — murmurou Aelys, assustada com a própria ousadia.

Kátyra fechou o livro com força. O silêncio entre elas era denso.

---

– Bordel da Rosa de Ferro

No coração das Terras Baixas, a vida continuava a pulsar com vinho barato e música suja. Na porta do bordel da Rosa de Ferro, Orren ria alto, puxando Tharion pela gola.

— Só uma noite sem pesos, sem guerras, sem coroas! Vamos, antes que as moças boas fiquem ocupadas!

Tharion sorriu de lado, meio sem vontade, mas deixou-se arrastar.

Quando chegaram à entrada, um homem os esperava encostado à parede. Trajava negro e prata, com um colar que refletia símbolos antigos.

— Caleum Mavros.

— Pelo visto, o destino tem senso de humor — murmurou Tharion.

Caleum se aproximou, o olhar penetrante como lâmina.

— Antes da farra, meus caros... uma pergunta: até quando vocês vão fingir que não sabem quem ele realmente é?

Tharion sentiu o estômago gelar. Algo se remexia por dentro — e não era o vinho.

---

– Alguns vinhos depois.

As luzes alaranjadas tremeluziam entre tecidos de cetim pendurados no teto. O som de risadas, copos batendo e música de alaúdes desafinados ecoava pelo salão abafado. Orren estava já meio desabado num sofá, abraçado a uma garrafa e a uma dançarina que provavelmente havia se entediado com ele.

— Então você quer saber o que é voar de verdade? — gargalhou Orren, com o olhar turvo. — Pergunte a Tharion! Ele voa sem asas, mas quando cai... sempre cai em cima de alguém.

Tharion estava recostado, rindo baixinho, já meio alto.

— Se eu caísse em cima de ti, te enterrava, passarinho.

— A única coisa que tu enterra é teu próprio bom senso, irmão — retrucou Orren, rindo tão alto que assustou um gato que passava pela escada.

Caleum, sentado à parte, observava os dois. Sorriu com leveza, e serviu-se mais vinho, antes de deixar o cálice em cima da mesa com firmeza.

— Bebam, riam... é justo depois da batalha. Mas há histórias que não somem com o vinho — disse, a voz grave cortando o ar com seriedade.

Os dois amigos pararam devagar. Tharion franziu o cenho.

— Vai estragar a farra, Caleum?

— Só lembrar o que esquecem fácil.

Caleum fitou os dois e então começou, a voz transformada em um murmúrio ancestral:

---

– A Lenda da Fênix

— "Houve um tempo em que os descendentes da Fênix viviam nas Montanhas do Sul. Chamavam-se os Ardentis, os mais próximos dos anjos, tão belos e terríveis quanto o fogo dos céus. Quando os Darxas se ergueram, foram eles quem seguraram a linha de frente, queimando o chão ao redor para impedir a corrupção de avançar.

Mas a batalha foi traição. Alguém abriu os portões de dentro, e o céu não desceu a tempo. Os Ardentis foram massacrados, e dizem que o último deles... renasceu entre as chamas, mas foi levado por mãos sombrias antes de completar sua ascensão.

Desde então, espera-se seu retorno.

Alguns dizem que ele voltou, sem saber quem é."

Silêncio. Orren engoliu seco. Tharion encarava o fundo do copo como se buscasse respostas ali.

— Brincadeira, né? — disse Orren, rindo sem graça.

Caleum apenas bebeu. E não respondeu.

---

– Palácio do Norte, Quarto da Rainha

Cora vestia um manto cinzento, os cabelos ainda soltos do ritual matinal. As servas chegavam em fila, trazendo os colares, os sapatos, os braceletes, os ungüentos.

Todas... exceto uma.

A do perfume. A do olhar cúmplice.

Cora percebeu a ausência no mesmo instante. O estômago dela afundou como pedra em lago gelado.

Ela estava prestes a falar quando um guarda bateu à porta:

— A rainha consorte está convocada aos aposentos do rei. Agora.

---

– Sala de Guerra

A lareira ardia ferozmente, iluminando as tapeçarias com brasões de urso e lobo. Dimitry estava de pé, olhos fixos no mapa aberto sobre a mesa.

Ele não sorriu ao vê-la.

— Todos os traidores serão esmagados pela minha fúria — disse, sem rodeios. — E espias que ousam andar sob nosso teto, fingindo servir, serão mortos como ratos em celeiro queimado.

Cora não recuou.

— Está me ameaçando, meu rei?

Ele ergueu os olhos, fixos, escuros.

— Estou avisando que nem você ficará acima da verdade, se a verdade for podre.

Ela se aproximou, devagar.

— E Kátyra?

Dimitry apertou os punhos. O nome da filha parecia uma lança cravada em sua garganta.

— Saia.

Cora ficou ali, imóvel. O silêncio era tão pesado que a tapeçaria pareceu encolher na parede.

— Saia. Agora. — repetiu Dimitry, virando-se de costas.

Ela saiu. Mas os olhos da rainha queimavam. E não era com medo. Era com algo mais antigo. Mais perigoso.

---

---

– Palácio do Norte, Ala das Servas

A manhã nasceu com névoa. A fúria da rainha, no entanto, era mais densa que qualquer bruma.

Cora marchava pelos corredores como um vendaval — os cabelos ainda soltos, as vestes semiabertas, o olhar em brasa. Assim que avistou Nelya, a jovem serva do perfume caro, seus dedos se fecharam em garras.

— Foi você, não foi? — sibilou.

— Minha senhora?

— O perfume. Aquele perfume. Só os salões imperiais da Casa Rubra vendem esse aroma. Como chegou às suas mãos?

Nelya gaguejou, tentou recuar, mas Cora avançou.

E então veio a surra.

Sem aviso. Um tapa cortante no rosto. Um puxão violento no cabelo. A serva gritou, mas Cora estava tomada. Deu-lhe uma rasteira, a arrastou pelo manto, e então a empurrou contra a parede.

— FALA! — rugiu. — Com quem você dormiu?

Guardas chegaram correndo, mas hesitaram. Ninguém ousava tocar na rainha.

---

– Sala do Trono

O trono de pedra era frio como gelo. Dimitry estava sentado, os olhos faiscando, o maxilar travado. Quando Cora foi trazida, já mais calma mas ainda com sangue nas mãos, ele não moveu um músculo.

— Rainha Cora — disse ele, com voz neutra — você acaba de violar o tratado com os Bardaxas, que garante a inviolabilidade dos servos nas Casas Guardiãs. Além disso, agrediu uma das minhas servas pessoais.

— Pessoais? — ela cuspiu a palavra. — Você chama isso de pessoal? Está se deitando com elas, não está?

Dimitry se ergueu. Imenso. Imponente.

— E se estivesse? Sou rei! Meus atos não são julgados por desejo, mas por consequência. E você... você agiu como uma louca. Como uma criança mimada.

— Você me envergonha! — berrou ela. — Com suas palavras frias, com seu corpo dado às criadas, com sua covardia diante do sofrimento da nossa filha!

— Cale-se.

— NÃO! Você está afundado na própria sombra, Dimitry. Adam confiou a você o reino, mas você prefere se enterrar em mapas enquanto o sangue da sua filha escorre longe. Você... você já não é homem. É só coroa e veneno.

Ele se aproximou. Fúria contida. Mas o olhar dele... era de gelo.

— A partir de agora, você será trancada por três dias. Sem janela. Sem luz. Sem comida. Sem água. Sem servos. Sem ninguém que a ouça. Talvez, no silêncio, sua sanidade volte.

Ela abriu a boca, mas ele ergueu a mão.

— Tragam o cinete.

Os guardas hesitaram.

— O cinete, agora! — rugiu o rei.

Nelya, mesmo com o rosto machucado, aproximou-se com o objeto: um colar de metal com um pequeno sino, como os usados por escravas marcadas no sul.

Dimitry encarou Cora.

— Pendurem isso no pescoço dela. Que se ouça o tilintar da vergonha por onde passar.

Cora, em silêncio, deixou que colocassem. Mas os olhos dela... eram os mesmos de Moira, nos dias da tormenta.

E aquilo era só o começo.

---

More Chapters